O Dicionário de Botânica e a Rarefação do Autor

O dicionário de Botânica, que ora o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) torna público, tem uma trajetória interessante no que diz respeito à figura do autor. Trata-se de um manuscrito que ficou guardado por, talvez, mais de um século, em caixas do arquivo do Imperador Pedro II e, mesmo depois da criação do Arquivo do Museu Imperial, em Petrópolis, RJ, sua função de documento histórico, passível de ser guardado, foi questionada. Não tinha autoria. Como poderia ganhar valor histórico?

Durante a realização de uma pesquisa naquele arquivo de Petrópolis, o documento foi mostrado à historiadora da ciência Nadja Paraense dos Santos, solicitando-lhe um parecer sobre sua possível importância para a história, uma vez que ela era especialista em história da química e os verbetes do dicionário traziam muitas informações sobre a composição química das plantas. Nadja então copiou os manuscritos e dividiu a questão com Heloisa Maria Bertol Domingues, no MAST, pois havia ficado impressionada com a riqueza de informações científicas, sobre botânica e principalmente sobre química, que o documento continha. De fato, concluiu-se que o anonimato do documento, de 1600 páginas manuscritas – mais de 2000 mil classificações de plantas –, não anulava sua importância para a história da botânica e da relação entre a botânica e a química, prática que caracterizava a botânica, desde o século XVIII, pelo menos. A parceria foi formalizada e, pelo Programa de Capacitação Institucional, do MCTI, foi possível engajar Elaine Andrade Lopes no projeto. Dedicada, ela iniciou a transcrição do longo manuscrito e, hoje, depois de alguns anos de árduo trabalho, foi possível divulgar uma parte dele, enriquecido de imagens, coletadas on-line, com o auxílio de Ana Cristina Santos Matos Rocha e pela revisão meticulosa de Sandra Parracho Sant’Anna. A parte publicada diz respeito à relação química e botânica; uma das originalidades desse dicionário. Outra originalidade dele é a ênfase nos usos populares, na diferenciação étnica desses usos, apresentando o contato próximo dos conhecimentos tradicionais e científicos.

Diante do anonimato do dicionário, procedeu-se a intensa pesquisa das publicações botânicas do século XIX, de um lado, tentando saber se este estava publicado e, de outro, fazendo analogias de linguagem, na busca do autor. Quem foi o autor? Ou, quem foram os autores desse dicionário? Concordando com o que diz Roger Chartier, no livro, Autoria e história cultural da ciência (Rio, Azougue, 2012), sobre a “função autor”, concluiu-se que o anonimato do documento, é questão relativa. Baseado em Michel Foucault, Chartier afirma que a atribuição de um nome próprio a uma obra não é nem universal, nem constante. Dessa forma, a função de um autor, diz ele, é caracterizar a existência, a circulação e o funcionamento de certos discursos na sociedade. Assim, de um lado, “a coerência do discurso pode referir-se a vários indivíduos que competem e cooperam entre si. Por outro lado, a pluralidade das vozes e das posições do autor no mesmo texto é remetida de volta a um único criador. Neste sentido, a “função autor” está fundamentalmente separada da realidade fenomenológica e da experiência do escritor como indivíduo.” Desse modo, não seria um nome próprio, mas sim, a “função autor” que poderia conferir valor de existência histórica a esse dicionário.

Publicar, nesse multimídia, uma quarta parte do documento original, relativa aos verbetes que trazem referências à análise química ou às propriedades dos compostos, significa portanto dar existência a um dicionário que estava fadado ao esquecimento, mas que, no entanto, mostrou-se instrumento poderoso para interpretar um momento da história científica, ambiental e cultural, do Brasil.

O dicionário compõe-se de espécies de plantas agrícolas nativas ou aclimatadas no Brasil, apresentadas, em ordem alfabética. Na classificação, as mais de 2000 plantas estão, metodologicamente, divididas em itens que contém as seguintes informações: Sinonímia (nomes vulgares e nomenclatura científica); História Natural (descrição da planta); Propriedades (alimentícias, medicinais ou ornamentais) e Análise química, porém esta última não aparece em todas as espécies.

O manuscrito traz algumas marcas que evidenciam um trabalho inacabado. Por exemplo, no início de cada letra, há uma lista das plantas correspondente a ela, porém, esta lista não se mantinha na classificação; havia acréscimos de umas e supressão de outras; nem todas as espécies apresentavam o item Análise química, cf. dito acima, no entanto, em muitas há um espaço em branco que, aparentemente, seria completado posteriormente; e ainda, na letra “H” consta uma nota dizendo que “o Tomo I da obra será composto de introdução e pelas letras A, B, C, D, E, F, G, H, e I”, porém o manuscrito não conta com a introdução, nem com a letra “D” e nem com a letra “K” que pertenceria ao tomo II.

Diversas são as possibilidades de análise que oferece o dicionário. Ele permite a construção de um mapa fitogeográfico do Brasil, uma vez que juntamente à descrição das espécies, encontra-se a situação geográfica das mesmas. Traz pistas das redes das relações científicas que se formam através das inúmeras citações de nomes de botânicos, de químicos, farmacêuticos, práticos, médicos, cientistas, e das publicações científicas especializadas, tais como livros, teses, “memórias”, artigos em revistas etc., através das quais foi possível, também, situar temporalmente o documento, pois embora a sua preparação devesse ter levado muito tempo, a última referência à data é o ano de 1865, deduzindo-se que pouco depois desse ano o trabalho encerrou-se.

Duas características do conteúdo do dicionário permitem afirmar que esta foi uma obra de divulgação científica, com a intenção clara de atingir um público geral. Primeiro foi o fato de ter sido integralmente escrito em português, quando, nas publicações científicas de classificação e divulgação botânica, a língua utilizada ainda era o latim. Em segundo lugar, as plantas eram apresentadas por seus nomes vulgares, da linguagem popular; a nomenclatura científica aparecia como um item da descrição. Há ainda evidências de característica étnica das plantas, pois, em não poucos verbetes, os usos são especificados conforme seu preparo pelas diferentes culturas que compõem a sociedade brasileira.

Nesta época, em trabalho de divulgação científica desse porte, os desenhos botânicos eram importantes para a apreensão mais global das espécies, porém, não há imagens que acompanham os verbetes. Sendo assim, optou-se por fazer um levantamento iconográfico, procedendo a busca em documentos de um período, o mais próximo possível do estimado para o dicionário. As imagens foram pesquisadas on-line, junto a instituições que disponibilizam material de domínio público; em especial, web sites de botânica.

Este dicionário é importante para a história social/cultural das ciências no Brasil e mereceu ser divulgado, também, pelas características da vulgarização científica. As espécies foram apresentadas a partir de suas origens, geográficas, étnicas e por seus usos populares, em um momento em que o objetivo da economia nacional era explorar cientificamente a natureza, valorizando a agricultura através da diversificação da produção, tanto de alimentos quanto de fármacos. Traz informações polifônicas sobre relações científicas, tanto no que tange a instituições, produtores de ciências e de saberes tradicionais, quanto ao que tange às formas de produção e de socialização do conhecimento. Fundamentalmente, permite vislumbrar, através de toda a gama de indícios que apresenta, um momento histórico particular do desenvolvimento das ciências botânica e química, no Brasil, do século XIX. Nele, o nome próprio foi transcendido pelos múltiplos nomes das plantas e seus usos e pelos autores que lhes deram condições de existência.

Elaine Andrade Lopes
Heloisa Maria Bertol Domingues
Nadja Paraense dos Santos

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