Observando o MAST


Foto: Eclipse de Sobral na expo “Fotografia: ciência e arte”, do MAST/Crédito: Renata Bohrer (MAST).


  Em comemoração ao centenário da Teoria da Relatividade Geral e os 90 anos da vinda do físico alemão Albert Einstein ao Brasil que, na ocasião, visitou o campus MAST/ON; a coluna Observando o MAST propõe uma viagem no tempo para falar sobre um fenômeno astronômico observado no nosso país que mobilizou a comunidade científica nacional e internacional interessada no processo de comprovação da famosa teoria de Einstein. Para tanto, selecionamos alguns dos instrumentos científicos que foram testemunhas oculares desse importante evento histórico e que, hoje, integram o acervo do Museu de Astronomia e Ciências Afins.

  Em 29 de maio de 1919, uma cidadezinha do nordeste brasileiro entrava para a história ao ser palco de um dos eventos mais importantes da ciência mundial. Foi em Sobral, no Ceará, que o absolutismo de Newton cedeu espaço para o relativismo de Einstein. Publicada em 1915, a Teoria da Relatividade Geral, que é generalização da Teoria da gravitação de Isaac Newton, leva em consideração as ideias descobertas na Relatividade Restrita sobre o espaço e o tempo e propõe a generalização do princípio da relatividade do movimento para sistemas que incluam campos gravitacionais. Esta generalização tem implicações profundas no nosso conhecimento do espaço-tempo, levando, entre outras conclusões, à de que a matéria (energia) curva o espaço e o tempo à sua volta. Em pouco tempo, o jovem físico propôs, a comunidade científica, novas concepções sobre o tempo, espaço, massa, movimento e gravitação. Consciente do caráter revolucionário das suas ideias, ele sabia da importância de testá-las em campo.

  De acordo com as suas previsões, a trajetória da luz devia sofrer distorção pela imensa força de gravidade exercida por corpos maciços, como as estrelas e os planetas. Tal fenômeno poderia ser confirmado a partir de um eclipse solar. Antes mesmo de dividir com o mundo a Teoria da Relatividade Geral, Einstein já vinha procurando cientistas que pudessem ajudá-lo nos trabalhos de campo. Foi assim que ele acabou conhecendo Erwin Freundlich, do Observatório de Berlim. Com um tempo, novos astrônomos foram incorporados ao grupo como: Campbell e Curtis, do Observatório de Lick nos Estados Unidos e Carlos Dillon Perrine, do Observatório de Córdoba. A aproximação de Freundlich e Perrine contribuiu para uma das primeiras expedições de comprovação da Teoria de Einstein que começaram por volta de 1911, antes mesmo da publicação da Teoria da Relatividade Geral.

Ilustração da Revista de Londres, em 22/11/1919/ Reprodução de Internet.

  No Brasil, em 10 de outubro de 1912, Perrine se instalou na cidade de Cristina; outras expedições, brasileira, francesa e inglesa, interessadas em observar efeitos espectroscópicos relacionados à coroa solar, entre outros tópicos, se abrigam pela região ocupando outros municípios, por exemplo, em Silveiras e Passa Quatro. Nessa última cidade, ficou instalada a equipe chefiada por Henrique Morize, já naquela época diretor do Observatório Nacional. Entretanto, o mau tempo pôs fim ao evento. Dois anos após, os cientistas se preparavam para uma nova excursão. No dia 21 de agosto, ocorreu um eclipse solar. Dessa vez, sob o céu da Rússia. Era 1914, a Europa observava o começo da 1ª Guerra Mundial e, para azar de Freundlich, 20 dias antes do eclipse, a Alemanha declarou guerra à Rússia. Ele foi preso e, seus equipamentos confiscados, os russos não deixaram que realizasse o experimento. Em 1916, outra expedição, de origem argentina, foi organizada. No entanto, o mau tempo prejudicou os trabalhos.

  Apesar das inúmeras tentativas fracassadas, os cientistas não desanimaram e, depois de alguns anos, voltaram a se reunir. O próximo eclipse seria no dia 29 de maio de 1919. Mais uma vez, o Brasil é cenário do fenômeno astronômico. Além da Ilha dos Príncipes, na África Ocidental. Esse eclipse seria particularmente favorável porque o Sol se encontraria nas Híades, um aglomerado estelar aberto localizado na constelação de Touro. Além disso, de acordo com as previsões, o eclipse teria uma longa duração (algo em torno de cinco minutos). Foi o diretor do Observatório Nacional, Henrique Morize, o responsável por definir o melhor local para as observações do eclipse no Brasil.

  No dia 8 de março de 1919, um grupo de cientistas ingleses embarca para uma viagem que iria durar seis meses. Davidson, Crommelin e o restante da equipe chegaram a Sobral, Ceará, no dia 26 de abril. Na medida em que os dias se passavam, crescia a ansiedade com relação às condições meteorológicas para o eclipse. A preocupação era legítima. Segundo o relatório escrito por Cromelim, em 29 de maio, o dia amanheceu nublado. No entanto, com o passar das horas, as nuvens se dissiparam, até que um imenso buraco surgiu entre elas, permitindo assim a visualização do Sol e a tomada das fotografias. Já do outro lado do Atlântico Sul, na ilha de Príncipe, o tempo não cooperou com a equipe de Eddington.

  O dia vira noite em Sobral. Durante o eclipse, várias chapas fotográficas, de câmeras acopladas a telescópios, foram tiradas em sucessão, para registrar a posição das estrelas que estivessem próximas à borda do Sol. Os astrônomos ingleses ficaram muito satisfeitos com as placas tiradas com auxílio do telescópio de quatro polegadas, já que sete estrelas apareceram sobre elas. As placas do astrógrafo registraram doze estrelas. Entretanto, não foram consideradas boas, pois as estrelas apareciam difusamente. A razão para isso seria que, no momento do eclipse, a regulagem do astrógrafo pode ter sido alterada em função da brutal queda de temperatura dentro da luneta. Davidson e Crommelin retornaram a Sobral alguns dias depois para fotografar o mesmo campo de estrelas, agora sem a presença do Sol, para que essas novas fotografias pudessem servir como comparação.

  Dentre todas as fotografias tiradas na Ilha de Príncipe, apenas duas foram consideradas válidas, sete estrelas. Após das análises sobre os resultados gerados a partir das fotografias da comissão inglesa em Sobral, no dia 6 de novembro de 1919, durante uma sessão solene da Royal Astronomical Society, em Londres, foi consagrada a Teoria da Relatividade Geral.




Observatório Nacional em Sobral


  Chefiada pelo diretor do Observatório Nacional, Henrique Morize, a equipe brasileira formada por Domingos Costa, Allyrio de Mattos e Lélio Gama; chegou à cidade no dia 9 de maio. Assim como o evento de Passa Quatro, em 1912, o grupo brasileiro juntou-se à missão britânica, comandada pelo astrônomo Crommelim. O seu principal objetivo era fazer observações espectroscópicas da coroa solar. Enquanto o grande dia não chegava, a equipe aproveitava para testar os instrumentos. Os trabalhos seguiam em ritmo acelerado. Abaixo, confira trechos do relatório de Morize, entre os dias de 19 a 28 de maio de 1919.



Foto: Membros da comissão inglesa e brasileira no evento de 29/05/1919/ Crédito: Acervo MAST.


  “Dia 19 de maio - Céu encoberto e ameaçador, entretanto, não chove. A poeira é horrível e muito prejudica os instrumentos. Allyrio estabelece hoje as pêndulas do celóstato. Noite clara. Allyrio observa para a latitude.

  Dia 20 de maio - Dia nublado. Começo a retificação do equatorial de Steinheil com a qual vou trabalhar. Muito sofreu com o transporte: a dentadura do círculo horário está amoldada em diversos lugares e a objetiva está ofendida no centro, pelo parafuso da tampa móvel obtura grande parte da região onde se deve produzir o eclipse, o que dificulta a região onde se deve produzir o eclipse, o que dificulta a retificação. O céu está muito encoberto, nebulosidade de 7 a 8, se continuar assim está perigando o eclipse. Noite límpida. Continua hoje o trabalho de retificação do espectrógrafo.

  Dia 21 de maio - A noite foi menos quente que do costume, mas o céu está completamente encoberto por N e KN, entretanto não choverá e essas nuvens se dissiparão com o calor da tarde. A poeira é considerável e com a leve viração de hoje lançou-se no mecanismo e o prende, de maneira que o movimento lento em declinação não funciona. Além disso a luneta vibra fortemente, apesar de haver sido (sic) substituído no Rio, o pé de treliça por outro de madeira massiça. Se houver vento no dia do eclipse não poderemos empregar exposições demoradas que, pela utilização por Bigowidar para f/15 sendo agora f/35 a abertura de Steinheil conduz a exposição máxima de 5,0 segundos. A noite o céu limpo.

  Dia 22 de maio - O Allyrio regulou o espelho do celóstato, e o Domingos continuou com o estudo dos espectrógrafos. [...] O Domingos continua a retificação dos espectrógrafos.

  Dia 23 de maio - Muito mosquito na primeira parte da noite. Céu claro. Vento quase nulo. [...] Noite clara, continua a retificação dos espectrógrafos. Durante do dia Allyrio tratou do celastato, no qual o espelho foi colocado. O movimento de relojoaria é extremamente vagaroso, e o regulador já está no limite. A poeira que penetra por toda a parte se aloja no parafuso sem fim e nas engrenagens, sem que seja possível impedir seu acesso. A equatorial Steinheil está pronta, dando-se com ela o mesmo fato. A barraca dela é defeituosa e deixa penetrar pó. Hoje arranjou-se um batedor para marcar os segundos na ocasião do eclipse. É constituído por uma base presa à armadura de um relais, que bate sobre um cálice de cristal a cada segundo. [...].

  Dia 27 de maio - Amanheceu o céu totalmente encoberto, até a hora correspondente ao eclipse. Se for assim no dia 28 estamos perdidos. Hoje assentaram-se os últimos espectroscópios. O Allyrio aceita o relógio do Mailhat após ter forçado as molas. A tarde dispõe de tudo para fazer a noite a impressão das escalas de intensidade óptica nas placas, a qual se realiza com uma bateria de acumuladores e uma lâmpada padrão.

  Dia 28 de maio - Levantei-me às 6h após noite má devido aos mosquitos. O céu está encoberto [...]. Retifiquei novamente o fotoequatorial de Steinheil. Todavia o vento e a poeira impedem de completamente acerta o relógio. Soube hoje, por acaso, que foi substituído sem que soubesse, o obturador da luneta de Mailhat, dali resultando não ser possível colocar a placa no foco químico e ser necessário, cortar o tubo (na véspera do eclipse)”. (Morize, de 19 a 28 de maio de 1919).


  Na manhã do dia do eclipse, a equipe brasileira faz os últimos ajustes dos equipamentos. Em relatório, Morize relata as condições do tempo no momento do evento:


  “Dia 29 de maio - Foi feito o secionamento do tubo da luneta Mailhat e tiradas provas de ensaio ontem mesmo. O céu totalmente encoberto é desesperador. Ensaio o obturador do Steinheil, [...] ontem reparado, parece andar bem. O movimento de relojoaria, porém, anda pessimamente, ora adiantando, ora retardando. Às 8h15min chuviscava, mas às 8h56min, produziu-se uma abertura entre as nuvens, por onde se pode observar a totalidade. Durante mais de 1 minuto, houve ainda alguns tênues vapores sobre o disco do Sol, que todavia, não impediram as fotografias.” (Morize, em 29 de maio de 1919).


  Depois do registro do eclipse, a expedição brasileira inicia outra fase dos trabalhos:


Foto: Registro do Eclipse com a famosa Protuberância de Tamanduá/ Crédito: Reprodução de Internet.

  “Começa-se a desmontar os instrumentos. Revela-se as fotografias. As da objetiva de Zeiss f/35 tomadas sem movimento de relojoaria, deram 3 placas instantâneas regulares. As da teleobjetiva, deram 3 placas instantâneas regulares. As da teleobjetiva de Zeiss não deram nada; [...] A do espectrógrafo de quartz de Heyde nada deu, nem mesmo o espectro de comparação. Parece que ou o caixilho não foi aberto ou a placa foi nela invertida, ficando para a frente a capa do antehalo que é opaca. Os dois pequenos espectrógrafos deram os limbos de coroa sobre um fundo de espectro contínuo” (MORIZE, 30 de maio de 1919).


  Durante o fenômeno, Henrique Morize fez um importante registro fotográfico. A equipe brasileira estudava a coroa solar, quando o diretor do Observatório Nacional conseguiu fotografar uma grande protuberância do Sol, conhecida depois como "protuberância do tamanduá". Desde então, a fotografia aparece em quase todos os livros que citam eclipse solares.


Foto: Espectrógrafo, Hilger/ Crédito: Renata Bohrer (MAST).

  Observando o MAST, você encontra os vestígios da expedição brasileira de 1919. O eclipse de Sobral aparece na exposição “Fotografia: ciência e arte” que, entre outras coisas, apresenta uma série de objetos relativos aos vários processos da produção fotográfica, sobretudo, na área científica. Na mostra “Espaço Espectroscopia” é possível observar um espectrógrafo, do fabricante Adam Hilger. O objeto foi usado no evento. A mostra, que apresenta um pouco da técnica que revolucionou a Astronomia, reúne instrumentos que testemunharam a saga do homem na busca da compreensão do universo. Outro instrumento que participou do eclipse de Sobral e que integra o acervo do MAST é o Celostato, do fabricante R. Mailhat. Por ser um equipamento de grande porte, não foi possível incorporá-lo em uma das salas abertas ao público. Entretanto, na sala (amarela) da Reserva Técnica Visitável do Museu de Astronomia e Ciências Afins, é possível ver de perto uma parte do Fotoheliográfo Stenheil. Há indícios de que o instrumento pode também ter participado do evento que permitiu uma das primeiras comprovações observacionais da Teoria da Relatividade Geral.


Foto: Câmera fotográfica utilizada para mediação do desvio aparente das estrelas durante o eclipse total do Sol, em 19 de maio de 1919, para a confirmação da Teoria da Relatividade Geral./ Crédito: Renata Bohrer/ Acervo MAST.



Fontes:
Castro, Ildeu (org) e Videira, Antonio (org). “Einstein e o Brasil”, ed. UERJ, em 1995.
Videira, Antonio. “História do Observatório Nacional: A persistente construção de uma identidade científica”. - Rio de Janeiro: Observatório Nacional, 2007.
Barreto, Luiz Muniz. “Observatório Nacional: 160 anos de História”.
Morize, Henrique. “Observatório Astronômico: um século de história”. - Coleção Documentos de História da Ciência, 1., em 1987.
“SBPC - Ciência e Cultura”. Vol. 32, nº 5, em 1980.
Tomasquim, Alfredo Tiommo. “Einstein: O viajante da relatividade na América do Sul”. - Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2003.
Rodrigues, Joyce Motta. Dissertação “Entre Telescópios e Potes de Barro: O eclipse solar e as expedições científicas em 1919/ Sobral – CE”, pela Universidade Federal do Ceará, em 2012.
www.mast.br
www.on.br
http://pt.wikipedia.org/wiki/Relatividade_geral
https://cienciasetecnologia.com/teoria-relatividade-einstein/
http://revistapesquisa.fapesp.br/2009/05/04/sobral-29-de-maio-de-1919/
http://super.abril.com.br/ciencia/einstein-ceara-teoria-sertao-726063.shtml
http://www.fisica.net/relatividade/o-eclipse-de-1919.php
http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/fisica-sem-misterio/uma-forca-sempre-presente
http://semana.mct.gov.br/index.php/content/view/3526/Henrique_Morize_1860_1930.html